Um atleta pode se recusar ao desconto de 25% de salário estabelecidos na Medida Provisória 936?

Olá a todos, espero que estejam bem e se cuidando neste momento conturbado da história e da humanidade em razão das consequências das medidas tomadas para tentar reduzir o nível de contágio pela COVID-19. E a coluna deste mês vem tratar de um tema trazido pelas medidas tomadas pelo Governo Federal, neste momento, e é o resultado de uma consulta que tive no escritório no dia 04 de junho de 2020, feito por uma cliente nossa que joga futebol, em um clube no Brasil.

É importante deixar registrado para que, no futuro, aqueles que tiverem acesso ao conteúdo deste artigo tenham em mente os recortes históricos e geográficos que o baseiam, posto que as condições aqui tratadas podem haver mudado ou não.

A nossa cliente atleta profissional de futebol fez esta pergunta extremamente atual quando o seu empregador enviou um comunicado a todo elenco propondo um acordo para fazer a redução de 25% dos seus salários, a ser calculado pelo valor bruto, ou seja, antes dos descontos do imposto de renda, FGTS e INSS, amparados pela Medida Provisória 936, se comprometendo, nas exatas palavras do clube: “cadastro das Atletas junto ao Ministério da Economia para recebimento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, pelo Empregado, no montante de 25% (vinte e cinco por cento), apurado sobre o valor a que o mesmo teria direito caso recebesse o seguro-desemprego, a ser pago pelo Governo Federal

Para que vocês tenham ideia do que isso representa vamos dar um exemplo do que é proposto, com um valor fictício de salário, para não deixar público um dado privado do contrato de trabalho da atleta.

Supomos um salário pago na carteira de trabalho, sem considerar direito de imagem, que não pode ser reduzido por ser verba, em tese de natureza civil de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Redução de 25% do salário, R$ 2.500,00. Valor que o Governo Federal poderá pagar, segundo o disposto no texto da Medida Provisória 936 ou seja 25% do valor do seguro desemprego, que neste exemplo hipotético seria de R$ 1.813,03. Assim, temos um valor pago de R$ 453.25(quatrocentos e cinquenta e três reais e vinte e cinco centavos)

Desta forma, a atleta terá uma redução real nos seus vencimentos de R$ 2.046,74 uma redução pouco maior de 20% dos vencimentos no contrato de trabalho.

Não temos os dados de quanto seria a alegada perda de receitas deste clube mas, podemos tecer considerações que valem para todos os clubes de futebol, por ser um raciocínio genérico. As receitas dos clubes deveriam ter disso reduzidas apenas os valores das bilheteiras dos jogos, em que o mando de jogo fosse seu, porque a única fonte de renda que não está sendo recebida é esta. Porém, esta redução de receita é acompanhada também da redução das despesas de realização dos jogos, que, apenas a título de exemplos são: a contratação de pessoas, para fazer a orientação do público ao redor do estádio ou dentro, o pagamento das despesas com o policiamento, custos com iluminação e consumo de agua, além dos descontos da receitas utilizados para o pagamento das taxas administrativas.

Vejam que, às vezes, a receita da bilheteria pode até ser negativa, ou seja, pode dar prejuízo para o clube mandar os jogos em seus domínios, se o público presente não atingir o número mínimo, para pagar a operação do estádio.

Já as demais fontes de receita não deveriam sofrer tamanha redução a fim de justificar a redução de salários dos atletas, porque o valor do patrocínio não poderia ser alterado neste período, porque o clube continua a expor a marca do seu patrocinado em suas mídias sociais, pode continuar a expor a marca utilizando as mídias sociais dos atletas. Recebe também o valor vindo do pagamento das mensalidades pelos sócios dos clubes ou dos programas de fidelidade que permitem as pessoas comparem ingressos, antes dos não participantes, os chamados erroneamente de programas de sócios torcedores. Sim, estes programas podem ter  reduzido sua receita pela inadimplência mas, esta inadimplência já deveria estar prevista, porque a entrada e a saída de participantes é algo comum e constante, ou seja, todos os clubes sabem que aquela receita é variável e aqui mais uma vez a redução de sócios torcedores traz como consequência a redução dos valores gastos para a manutenção destes produtos.

Feita esta explicação de quanto haverá de redução real no salário da atleta, que não será reposto no futuro, bem como demonstrado que a situação financeira dos clubes não deveria ser tão complicada como alegada, vamos a resposta objetivo do nosso artigo deste mês.

A atleta não precisa aceitar o acordo proposto pelo clube, para fazer a redução dos seus salários, primeiro porque pressupõe um acordo de vontades para acontecer e, se uma das partes não desejar, não acontece o acordo. Em segundo lugar porque a Constituição Federal garante a impossibilidade de o salário ser reduzido.

Assim, a atleta e qualquer empregado de um clube de futebol, tem o direito de se opor à redução dos salários e da jornada, já que, segundo consta do texto da Medida Provisória nº 936, o que existe é a possibilidade de realização desta redução excepcional dos salários, dependente de “acordo” entre as partes. Assim temos em mente que este acordo, para existir, depende da manifestação expressa da vontade do empregador e do empregado para que tenha validade.

A Constituição Federal assim estabelece o direito do trabalhador de não ter o seu salário reduzido:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

Ou seja a lei maior, aquela de onde todas as demais devem buscar extrair a sua validade é clara ao afirmar que o salário não pode ser reduzido por acordo individual entre trabalhador e empregador e para existir esta redução é necessária a intervenção e assistência do sindicato para a realização de acordo coletivo ou convenção coletiva.

No mundo do esporte este princípio pode e deve ser extremamente respeitado pois, sendo o contrato de trabalho do atleta um contrato por prazo determinado e, sendo considerado pelas decisões dos tribunais trabalhistas que contratos autônomos já permitem a redução do salário quando for realizada chamada a renovação do contrato (que na verdade é um contrato autônomo) aceitar agora a redução do salário poderá permitir que as bases de negociação do novo contrato tenham como base o salário reduzido. Isto porque o clube poderá utilizar da alegação de que o atleta consegue viver apenas com o salário reduzido sem a necessidade do valor total ou de aumento salarial.

O clube, é verdade, poderá realizar a dispensa no caso da recusa do empregado em aceitar a redução salarial. Mas esta dispensa deverá ser encarada como uma dispensa imotivada do contrato de trabalho do atleta, obrigando ao clube fazer todos os pagamentos inerentes a dispensa imotivada porque a existência da Lei Pelé tratando de direitos trabalhistas dos atletas, não retira a aplicabilidade dos direitos trazidos pela CLT. Ou seja: deverá efetuar o pagamento das seguintes verbas: saldo salário dos dias trabalhados, que são os dias contados do dia primeiro do mês até o dia da dispensa; cláusula compensatória desportiva, como todos os clubes anteciparam as férias coletivas, no mês de abril, mas não efetuaram os pagamentos das férias é necessário o pagamento destas férias vencidas; abono de férias, correspondente a um terço do salário da atleta; e o 13º salário de forma proporcional

A cláusula compensatória esportiva é aquela prevista no artigo 28 II da Lei Pelé que assim estabelece:

Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:

….

II – cláusula compensatória desportiva, devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas hipóteses dos incisos III a V do § 5º.

….

§ 5º O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais: 

II – com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei;

IV – com a rescisão indireta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e

V – com a dispensa imotivada do atleta.

O valor desta cláusula compensatória deverá estar estabelecido no contrato de trabalho firmado entre clube e atletas, segundo o estabelecido no § 3º do mesmo artigo 28 da Lei Pelé, que assim estabelece:

Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:

§ 3º O valor da cláusula compensatória desportiva a que se refere o inciso II do caput deste artigo será livremente pactuado entre as partes e formalizado no contrato especial de trabalho desportivo, observando-se, como limite máximo, 400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão e, como limite mínimo, o valor total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato.

Ou seja, se o clube desejar dispensar a atleta que se recusar a aceitar a redução dos seus salários deverá efetuar o pagamento do valor desta multa, calculada como estiver estabelecido no contrato, de uma única vez, sendo assim economicamente inviável a realização desta dispensa agora. Mas, caso aconteça, esta dispensa sem o pagamento destas verbas a atleta deverá acionar o clube na Justiça do Trabalho para receber o valor de todas as suas verbas rescisórias.

Contudo, caso o clube mesmo diante da recusa da atletas em aceitar a redução, a faça de modo unilateral e, portanto ilegal, a atleta prejudicada deverá se utilizar do seu advogado de confiança, para buscar o socorro na Justiça do Trabalho, buscando receber o valor indevidamente descontado e, sendo de sua conveniência ,pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho, pela mora salarial do empregador.

Não podemos deixar de analisar a decisão vinda do Supremo Tribunal Federal, no julgamento datado de 17 de abril de 2020, onde muitos buscam a legalidade para o acordo individual, firmado entre clube e empregado, para fazer a redução dos salários. Mas o fazem sem considerar que o julgamento apenas a considerou valida, em razão da excepcionalidade provocada pelas medidas tomadas em razão do isolamento social, tomadas para diminuir a propagação do COVID-19. Mas não fazendo, quando analisam o julgamento, de forma clara que o acordo necessita ser aceito pelo empregado.

O que o referido julgamento fez foi validar o acordo de vontade individual firmado entre empregados e empregadores, mas, não obrigou aos atletas e demais empregados a aceitarem a redução proposta pelo clube empregador. Vejamos parte da matéria apresentada pelo próprio STF, em seu site, que deixa claro que se trata de um acordo e não de uma imposição de vontade do empregador, sobre a vontade do empregado:

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a eficácia da regra da Medida Provisória (MP) 936/2020 que autoriza a redução da jornada de trabalho e do salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho por meio de acordos individuais em razão da pandemia do novo coronavírus, independentemente da anuência dos sindicatos da categoria. Por maioria de votos, em julgamento realizado por videoconferência e concluído nesta sexta-feira (17), o Plenário não referendou a medida cautelar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6363, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade. (destaquei)

Sendo assim, aqueles que fazem a leitura da decisão da Medida Provisória e do julgamento do STF, deixando de considerar que se tratada de um acordo, ou seja, do encontro de vontade das partes, para a redução de vontade, passam a equivocada impressão que os atletas ou qualquer outro empregado é obrigado a aceitar a redução, em seus salários, mesmo que esta redução venha a trazer os rendimentos para valores inferiores as necessidades do empregado para pagar as suas despesas ordinárias, que eram baseadas no salário integral e não na redução.

Sendo o contrato de trabalho celebrado por prazo determinado pelo período mínimo de três meses e máximo de cinco anos, ao atleta pode não ser interessante também reduzir o seu salário agora, se estiver próximo do final do período do contrato, porque não tem a garantia de que terá um novo contrato para continuar no clube na próxima temporada, o mesmo valendo para a atleta que está no meio do seu contrato de trabalho. A MP 936 foi pensada para trabalhadores com contrato de prazo indeterminado e não para aqueles que tem contrato de tempo determinado, às vezes muito curto, onde a redução afeta todo o planejamento financeiro do atleta e importa em redução efetiva do valor total do contrato, como no caso de contratos em março de 2020 com validade até julho. E não era do espírito da MP prejudicar quem tem este tipo de contrato de trabalho por prazo determinado de tempo.

Podendo e devendo, ainda, ser lembrado que os atletas nos seis meses anteriores ao término do seu contrato de trabalho podem assinar um pré-contrato com outra agremiação, segundo o disposto no REGULAMENTO NACIONAL DE REGISTRO E TRANSFERÊNCIA DE ATLETAS DE FUTEBOL para o ano de 2020, produzido pela CBF. Nesta hipótese, pode ser de interesse do atleta buscar a rescisão do contrato com o clube que reduzir irregularmente o salário para assinar novo contrato com um novo clube, agora, sem necessitar esperar o término do contrato de trabalho.

Assim, esperamos haver deixada clara a possibilidade da atleta se recusar a aceitar a redução dos salários por acordo individual de trabalho imposto pelo clube de futebol, tendo como base a Medida Provisória 936.

Obras consultadas:

Constituição Federal

(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)

Lei Pelé

(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm)

REGULAMENTO NACIONAL DE REGISTRO E TRANSFERÊNCIA DE ATLETAS DE FUTEBOL 2020

(https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202001/20200109152750_761.pdf)

Seguro-Desemprego Formal

http://trabalho.gov.br/seguro-desemprego/modalidades/seguro-desemprego-formal

STFhttps://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441651&ori=1

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